Omri Ferradura Breda

Mestre de Capoeira e pedagogo

O objetivo deste trabalho é analisar como são transmitidas pela mídia e pela escola informações relativas à história afro-brasileira, especialmente à Abolição da Escravatura, e suas implicações nas identidades dos estudantes.

Devido à extensão do tema, recorri a diversos autores, privilegiando, no entanto, os estudos de Emilia Viotti da Costa, Elisa Larkin Nascimento, Ricardo Franklin Ferreira e Thomas Skidmore, por considerar seus trabalhos relevantes nas áreas de Ciências Sociais, Educação, Psicologia e História.

Ao lado da pesquisa bibliográfica, houve ao longo do trabalho preocupação em interferir na realidade, estabelecendo um diálogo com os autores do principal objeto de estudo analisado: a edição especial da revista Turma da Mônica – coleção Você Sabia?, nº 2, da Editora Globo, intitulada “A Abolição dos Escravos”. A revista é consumida por crianças e jovens de diversas faixas etárias e camadas sociais em todo o território nacional.

Livros com conteúdo educacional, porém não oficializados pelo MEC.

A coleção Você sabia? se propõe a ser uma fonte de informação lúdica, que facilite o aprendizado de certos feitos históricos nacionais, como o “Descobrimento” e a “Independência”. Por seu caráter supostamente educativo, definido pela editora como “ferramenta lúdica de apoio educacional”, pode ser encarada como um recurso paradidático, que o professor poderia utilizar para suscitar o interesse dos alunos por determinado tema em sala de aula.

Observou-se que um enfoque eurocêntrico e veladamente racista foi utilizado na apresentação dos conteúdos relativos à história afro-brasileira. A revista, no entanto, alegadamente se propõe a ser um veículo de valorização dessa mesma história. Conclui-se, portanto, que mesmo uma atitude teoricamente bem-intencionada em relação à questão racial brasileira, quando tratada de forma superficial, pode se provar infrutífera e contraproducente, estimulando de forma ingênua justamente aquilo que se propõe a combater.

O termo “negro” foi utilizado pelo dominador europeu para esvaziar a identidade dos diversos povos africanos escravizados, homogeneizando-os. Porém, ao longo deste trabalho será também utilizado na forma como foi ressignificado pelo movimento negro: uma identificação positiva, com os valores étnicos dos afrodescendentes (Ferreira, 2000, p. 81). “Mesmo reconhecendo as limitações advindas de assumirmos categorias raciais como “branco” e “negro”, tais classificações foram utilizadas, pois, se não for à ‘raça’, a que atribuir as discriminações que somente se tornam inteligíveis pela idéia de ‘raça’?” (Guimarães, 1999a, p. 24).

A mídia, os livros didáticos e os paradidáticos são fontes disseminadoras de informação e valores. No entanto, a transmissão destes é baseada numa ideologia muitas vezes sem que os autores se apercebam disto. Para ilustrar esse fato, foi feita uma breve análise das representações sociais do negro utilizadas em histórias em quadrinhos no século XX. Avaliamos o impacto que essas representações podem ter na identidade e na autoestima das crianças brasileiras.

O trabalho não se propõe a ser uma pesquisa imparcial, baseada numa pseudoneutralidade científica impossível de ser atingida nas Ciências Humanas. Segundo Ferreira (2000) e Freire (1996), é importante que o trabalho em ciência politicamente comprometido parta de situações existenciais que tenham tocado emocionalmente o pesquisador, de modo que este recuse a neutralidade, passando a “elaborar trabalhos cada vez mais diretamente comprometidos com a melhora da condição humana” (Ferreira, 2000, p. 19-61). Nas palavras de Freire (1996): “daí o meu nenhum interesse de (…) assumir um ar de observador imparcial, objetivo, seguro, dos fatos e dos acontecimentos (…). Quem observa o faz de um certo ponto de vista, o que não situa o observador em erro” (1996, p. 14).

A subjetividade do pesquisador deve ser considerada uma das variáveis a influenciar os rumos da pesquisa. A motivação principal que me levou à elaboração deste trabalho foi a indignação sentida ao analisar a revista citada e perceber que tal material foi impresso e distribuído em todo o país. Levando em conta o cenário de desigualdade social/racial existente no Brasil, fazem-se necessárias medidas e estudos que combatam esse mal e tentem, de alguma forma, reverter esse quadro.

Representação social do negro em histórias em quadrinhos – HQs

As HQs, como são chamadas pelos fãs, pelo custo reduzido e facilidade de leitura, são para muitos a única fonte de leitura acessível. Tradicionalmente, tendem a representar a ideologia vigente na época em que são editadas. Dessa forma, os personagens, a linha narrativa e, principalmente, as gravuras podem servir como termômetro dos valores e da ideologia de determinado momento histórico.

Tarzan – 1912

Criado por Edgar Rice Burroughs, filho do inglês Lorde Greystoke e sua esposa, Lady Alice, Tarzan representava o imaginário do imperialismo europeu na África. O “Rei dos Macacos” era a única pessoa branca no meio da exótica selva africana, portanto era justo que recebesse o titulo de “Rei”. A imagem que se expunha era a de que no continente africano só habitavam macacos ou seres humanos próximos destes na escala evolutiva.

  
Figuras 1 e 2: O personagem branco sempre em vantagem.

Tintin – 1931

Personagem de Hergé, Tintin apresentava a visão ingênua do bom europeu em visita à África. O colonialismo e o imperialismo da época se refletem em imagens estereotipadas, como esta:

Figura 3: A África no imaginário europeu.

Mandrake – 1934

Criado por Lee Falk, o personagem se fazia acompanhar de Lothar, um príncipe africano que havia trocado seu reino e o título de “Príncipe de Sete Nações” para viver como capataz de seu “patrão”:

Figura 4: Lothar é o serviçal de Mandrake. “No início da série, ele era um escravo negro que chamava Mandrake “mestre”. Com o tempo, mentalidade evoluindo, passa a chamá-lo de “patrão”, termo um pouco menos racista” (www.bdoubliees.com, acesso em 17/06/2006).

Apesar de constantemente salvar Mandrake de situações de risco e de ser apresentado como seu amigo e braço direito, Lothar sempre aparecia nas gravuras atrás de Mandrake. Até porque essa era sua função.

   

Figuras 5 e 6: “A presença de Lothar, com seu enorme corpanzil negro, só tinha a finalidade de destacar Mandrake graficamente” (www.arcadovelho.com.br, acesso em 17/06/2006).

Fantasma -1936

Das mãos do mesmo autor, surgiu O Fantasma. O personagem, de linhagem britânica nobre, vivia na África, sendo sempre representado como modelo de civilização e ordem para os chamados povos selvagens.

Figura 7: “Ele atende às tribos locais sentado num trono, com caveiras esculpidas nas pontas!” (www.universohq.com, acesso em 17/06/2006).

Figuras 8 e 9: “Dá medo ver o Fantasma enfurecido”; “O Fantasma é violento com os violentos” – ditados da selva (www.universohq.com.br, acesso em 17/06/2006).

Segundo Galvão (on-line),

o Fantasma perdeu força simplesmente porque a África não existe mais no imaginário mundial. Na década de 1930 ainda era o continente negro, cheio de mistério e animais enormes, e gigantes Masai e anões pigmeus. Os safáris eram chiques.

Hoje a África não tem mistério nenhum. Tem tutsis e hutus massacrando-se uns aos outros, tem a África do Sul recuperando-se do apartheid, tem a Libéria e a Somália, tem o Ebola e uma população miserável condenada a morrer de Aids. Quando dizemos que a África é selvagem, certamente não é no mesmo sentido que dizíamos há um século.

No trecho citado, o autor retrata a decadência do modo colonial de enxergar a África e a ascensão da imagem atual do continente. Ambas as visões são depreciativas, assim como as gravuras expostas. Os personagens brancos são valorizados em detrimento dos personagens negros.

Todos os heróis tinham em comum, além da descendência europeia, uma relação no máximo paternalista com os africanos, apresentados graficamente sempre em um nível imagético abaixo ou atrás dos protagonistas.

Sendo os autores de origem branco-europeia e vivendo em países de população majoritariamente branca, não é de se surpreender que refletissem os preconceitos e a imagem colonialista da época.

O Brasil é o segundo maior país de população negra do mundo, ficando apenas atrás da Nigéria (Guimarães, 1999b). É de se supor, portanto, que essas imagens oferecidas aos jovens brasileiros reforçassem um ideal de ego branco, desvalorizando a riqueza da pluralidade étnica do país. Só recentemente teve início um movimento de valorização da cultura afro-brasileira na mídia e no meio educacional.

Mídia, livros didáticos e paradidáticos

No que se refere a mídia, é uma instância formadora de opinião por excelência, extremamente ideológica, que tende a reproduzir os valores da classe que adquire os produtos anunciados em seus comerciais.

Lima (apud Ferreira, 2000) afirma: “Na mídia, o segmento negro tem sido representado por uma imagem estereotipada, na qual os afrodescendentes são mostrados frequentemente em posição subalterna em relação ao branco” (p. 43).

Nos últimos anos, a crescente mobilização da população negra fez o mercado perceber a necessidade de se afinar com esse novo consumidor, reproduzindo em revistas, jornais e programas de TV personagens negras em papéis diferentes dos “clássicos”: empregada doméstica, manobrista, ladrão. Há alguns anos, seria inimaginável um personagem negro protagonizar algum programa de TV ou filme. Nos anos 1970, ficou famoso o caso do ator Sérgio Cardoso, ator branco pintado de preto para viver o protagonista na novela A cabana do Pai Tomás. De lá pra cá, as emissoras têm procurado se adaptar aos novos tempos. Como o negro agora consome, deve ser retratado dessa maneira.

Nesse novo cenário surgem então iniciativas de “resgate e valorização” da cultura e da história negras, entre elas edições de revistas voltadas para o público jovem. Porém algumas perguntas se fazem pertinentes: qual o critério utilizado para determinar o que deve ser “resgatado e valorizado”? Em quais valores as informações são baseadas? Quais são os pressupostos ideológicos envolvidos? E, principalmente, qual a extensão da transformação pretendida com a difusão de certos saberes e omissão de outros, ou seja, até que ponto se pretende “mexer na ferida”?

Além da mídia, os livros didáticos, pela sua abrangência e importância para professores e alunos, estão na ordem do dia em se tratando de preconceito.

Tradicionalmente, esses livros têm sido disseminadores de discriminações diversas. No tocante à população afro-brasileira, a primeira imagem de personagens negros em livros didáticos é em situações a-históricas, posto que não se apresenta a História pré-colonial africana, em sua riqueza e diversidade. Os africanos de diversas origens são chamados pelos nomes genéricos de “negro” ou “escravo”, e sua cultura é apresentada como selvagem. As fotos ou gravuras em que aparecem são sempre relacionadas à escravidão ou a papéis subalternos na sociedade moderna, como faxineira ou porteiro. Segundo Silva (2002),

a primeira representação que a criança negra tem de si na escola a projeta como escrava, sujeito passivo da história, escravizada e, num ato de indulgência dos brancos, libertada. Não há feitos gloriosos dos seus antepassados, não há heróis negros, a religião dos negros é tratada como fetiche, a semântica da palavra negro ou preto é empregada como sinônimo de algo ruim, depreciativo (p. 68).

A população branco-europeia tem sua imagem e seus valores constantemente valorizados. Isso contribui para a formação de uma cultura veladamente racista, posto que se funda em estereótipos aceitos tácita e inconscientemente pela população. De acordo com Ferreira (2000),

apesar de [na escola] nem sempre haver uma hostilidade declarada contra a criança afrodescendente, há uma consistente valorização dos valores branco-europeus, de forma a favorecer, nas crianças, a identificação com os ideais do grupo dominante branco (p. 70).

Do ponto de vista da criança negra (principalmente da criança negra pobre), seu passado não tem nada a ser valorizado. A escola, ao adotar uma postura conformada com o status quo, acaba por ser uma instância de opressão contribuidora para o preconceito.

Os valores que estigmatizam a população negra são confirmados pela educação, em ações e omissões que tendem a relacionar a posição econômica desvantajosa dessa população a uma suposta incapacidade inata de ascender socialmente. Quando esses valores são introjetados pelo oprimido, sua condição presente de inferioridade econômica é justificada (Freire, 1987; Ferreira, 2000). Como consequência cruel,

a cor de pele e as características fenotípicas acabam operando como referências que associam de forma inseparável raça e condição social, o que leva ao afrodescendente a introjeção de um julgamento de inferioridade, não somente quanto ao aspecto racial, mas também em relação às condições socioeconômicas, implicando o favorecimento de uma concentração racial de renda, de prestígio social e de poder por parte do grupo dominante (Souza, apud Ferreira, 2000, p. 41-42, grifo nosso).

Quanto aos livros didáticos, se faz mister reconhecer que nos últimos anos a situação se alterou. Desde a implementação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD/MEC) dezenas de livros são vetados anualmente. As editoras passaram a ser mais criteriosas e o nível das edições melhorou. Essa política vai ao encontro dos anseios da população brasileira e das reivindicações antigas do Movimento Negro (Nascimento, 1993). Ainda assim, de acordo com Santos (apud Trindade; Santos, 2002), “vários volumes constantes do Programa Nacional do Livro Didático estão muito distantes de uma análise menos estereotipada e conservadora da história” (p. 79). Esse autor, em artigo sobre o ensino de História, levanta a questão: “como interessar-se pela historia brasileira, se esta é contada a partir da perspectiva das classes dominantes, dos vencedores e dos detentores do poder?” (p. 82).

Coelhadas na Abolição

Nossa análise foi feita sobre a edição especial da revista Turma da Mônica cujo título é “Abolição dos Escravos”. Acredito que a história tenha sido baseada em informações históricas rasas, tratadas de forma superficial e preconceituosa. Pululam nas páginas exemplos repetidos de preconceito explícito. A ideologia racista permeia explicitamente o livro.

No ano de edição da revista, 2002, já havia no mercado diversos livros de História do Brasil revisada, o que indica que, se as informações preconceituosas não foram intencionalmente reproduzidas, ao menos a editora não se preocupou em pesquisar fontes modernas nem em ter uma postura crítica e reflexiva, comprometida com a mudança.

A figura do homem negro é representada em dezenas de imagens negativas: sofrendo, trabalhando acorrentado, sendo castigado. Em 44 imagens em que aparecem personagens negros, somente seis os apresentam em liberdade. Destas, duas se passam dentro do contexto da escravidão, em situação de fuga ou em lembrança de um passado fora do cativeiro. São 40 imagens negativas e estereotipadas para quatro positivas, ou seja, 90% da obra reforçam a condição de inferioridade da população afrodescendente.

Tabela 1: Classificação das imagens em que personagens negros aparecem representados negativamente

Aprisionados 5 imagens
Castigados 5 imagens
Apavorados 6 imagens
Em trabalhos forçados 9 imagens
Livres, porém esfarrapados/em ferros 13 imagens

A revista acerta ao apresentar com precisão a extensão dos danos feitos à população afrodescendente, mas não equilibra essa relação com imagens positivas das lutas protagonizadas por ela. Acredito que, dessa forma, inutiliza suas boas intenções e não alcança seu potencial social.

Pela pouca seriedade dada ao tema, é de se supor que os demais livros da coleção também sejam reprodutores da História oficial, dirigida por uma visão eurocêntrica e ufanista.

Seria preciso reproduzir as dezenas de imagens negativas para dar a real dimensão do que está sendo descrito; porém optou-se por destacar os exemplos de preconceito mais explícitos da revista:

Figura 10: A capa.

Temos a seguinte imagem: muitas pessoas felizes, comemorando a assinatura da Lei Áurea, exibida com alegria pela Princesa Isabel. Entre elas destaca-se um homem negro seminu, com os resquícios das correntes ainda nas mãos e radiante de alegria. Todos os outros estão vestidos. Como poderia estar ele tão feliz apesar das argolas de ferro que machucavam seus punhos e de sua situação desfavorável na sociedade?

É claro que se trata de uma alegoria, mas não podem ser deixados de lado os efeitos nocivos dessa imagem no inconsciente coletivo e, especialmente, na autoimagem das crianças negras que, dessa forma, se veem retratadas nas bancas de jornal de todo o país.

No início da revista, José do Patrocínio, personagem da história, está contando à Mônica sobre o tráfico de africanos, quando salienta:

Figura 11: O tráfico negreiro feito por africanos.

Por que “pior ainda”? O europeu escravizando é melhor? Ou menos pior? A imagem ainda apresenta o vendedor supostamente “traindo seus irmãos de cor” por uma ninharia. Reforçam-se aí três estereótipos: o negro objeto, o negro traidor e o negro burro!

A frase ainda escamoteia a verdade ao tentar passar a imagem de que existia um povo negro, e não diversas nações, muitas vezes inimigas históricas, que lutavam entre si, assim como ingleses, franceses e alemães – que nem por isso são apresentados como “traidores da raça branca”.

Segundo Romão (in Cavelleiro, 2001),

se é possível compreender que os brancos possuem entre si diferenças determinadas pelas existentes em um grande continente, não é possível observar este fenômeno quando, na escola, se fala dos (…) africanos. São tratados como se fossem todos iguais (p. 163).

Na escola, as diversas culturas africanas são tratadas indistintamente, as línguas reduzidas a dialetos tribais e as religiões a seitas (quando não “rituais satânicos”). Omitindo-se a diversidade, omite-se também o fato de que na África floresciam os mais diferentes conhecimentos artísticos e tecnológicos, adaptados às necessidades e ao modo de vida de cada uma de suas sociedades.

Generalizações e simplificações são recorrentes quando se trata de questões ligadas à cultura negra. Ou alguém já ouviu uma frase do tipo “os europeus falavam o dialeto europeu, viviam todos em um só reino e iam todos à Igreja Católica Apostólica Romana aos domingos”? É claro que não! Aprendemos na escola as diferenças entre Inglaterra, França, Portugal, Espanha. Sabemos da Reforma Protestante, das revoluções cientificas e até os nomes das caravelas de Cabral! Por que então não aprendemos nada sobre os Ashanti, os Bantus, os diversos reinos e civilizações africanas? Por que esse conhecimento é negado aos estudantes e aos professores brasileiros? Reduzir e homogeneizar são formas de uma estratégia velada de dominação, em que um dos objetivos é diminuir a curiosidade dos educandos em relação à sua história.

Um dos lemas da ideologia racista reforçada na revista poderia ser resumido na frase: “na África já existia escravidão muito antes da chegada do europeu”. Verdade. Assim como existia escravidão também em Roma e na Grécia, propaladas como a base da civilização e da democracia. Também na Europa, durante toda a Idade Média, a maior parte da população vivia em condições de servilismo similares à escravidão. O modo de produção capitalista veio alterar esse cenário, transformando a população pobre em “escravos assalariados”.

A escravidão na África era de natureza diversa da que o colonizador europeu instituiu nas Américas. O escravo africano muitas vezes se encontrava naquela condição por razões de guerra ou de dívida. O indivíduo mantinha seu nome e sua identidade. Muitas vezes essa escravidão era um momento transitório, e não raro acabava em casamento com algum membro do clã familiar, passando então a membro da nova comunidade.

O europeu trouxe consigo o advento da desumanização: o escravo deixava de ser humano para se transformar em objeto, perdia seu passado e sua identidade, sua língua e sua religião; perdia seu nome e passava a ser conhecido pelo sobrenome do dono da fazenda que o adquiria. Isso era inédito nas relações escravistas africanas, e foi uma semente nociva com consequências funestas até nossos dias.

A frase reproduzida na revista – “Pior ainda é o fato de que negros vendem negros” – é não mais que uma ridícula tentativa de justificar o injustificável! As pessoas que repetem essa baboseira do senso comum racista não se dão conta de que “brancos queimavam brancos” na fogueira durante a Santa Inquisição, em nome de Deus! Os horrores cometidos pela Igreja são condenados. No entanto, os inquisidores jamais são julgados pela cor de sua pele.

Inimigos matam e praticam todo tipo de ato vil contra seus oponentes desde que o mundo é mundo, independente da cor da pele. Por que então se acusa o “negro de vender negro”? Simples: porque foi bem-sucedida a empreitada europeia de diluir a identidade dos diversos povos africanos em um único e uniforme bloco, o dos “negros”. Dessa forma, não são observadas as particularidades de cada nação e, baseando-se nas guerras interafricanas, justificam-se os genocídios praticados pelo europeu no continente africano.

Ainda há na Figura 11 uma peculiaridade: a mulher presa usa saia de palha (provavelmente para parecer africana), porém a blusa é ocidental-moderna e o pano na cabeça remete a uma empregada doméstica brasileira.

A história continua:

Figuras 12 e 13: O destino da carga humana

Entre figuras de homens e mulheres negros sendo vendidos, marcados com ferro quente, empilhados no porão, todas reforçando sua condição inferior, encontramos a primeira e uma das únicas imagens do negro em liberdade, ainda que só na lembrança:

Figura 14: O estereótipo do rei africano

Pode-se perceber a semelhança entre o vestuário do personagem da Figura 14 com o “traidor da raça” da Figura 11 e o da negra da Figura 13. A imagem que fica é de que todo africano ou se veste com folhas ou com panos brancos.

Passatempos

Como de costume, nas revistas da Mônica, há uma seção de passatempos no interior da edição. É sabido que a atividade lúdica facilita a aprendizagem dos conteúdos e reforça valores. Penso que exatamente por isso a revista é mais perniciosa do que um material declaradamente racista, pois age em nível inconsciente, reforçando valores que estigmatizam a população negra como inferior.

Figura 15: Os personagens “em ordem de importância”.

Nesta página são apresentados os personagens da Abolição. Podemos reparar que o papel dos afrodescendentes, apresentados convenientemente ao final da página, é reduzido a “escravos libertos”, felizes da vida (apesar das correntes).

Nesta outra página, Jeremias, personagem negro, aparece como navegador europeu, encorajando o leitor a distribuir as palavras que a editora julgou serem as mais relevantes em relação à Abolição.

Figura 16: Onde estão as palavras Zumbi, luta, quilombos?

Na figura seguinte há um mapa. Os diversos povos africanos poderiam ter sido representados graficamente. No entanto, a África é apresentada como bloco único e uniforme.

Figura 17: A Europa é um continente e Portugal, um país. E a África?

A próxima atividade levanta uma questão: se Jeremias é representado como europeu, por que então não se pensou em apresentar o personagem Anjinho – obviamente loiro de olhos azuis – como africano?

Figura 18: Os personagens estão rindo do quê?

Na primeira atividade, insinua-se que foram necessárias somente leis para “libertar os escravos”, negligenciando as lutas deles por sua própria libertação.

Na segunda atividade da mesma página, utiliza-se o conceito de “raça”, junto com as palavras “negro” e “escravo”. Associando as três, podemos ter como combinações: “a raça do escravo é negra”; “o escravo é da raça negra”; “a raça negra é escrava”.

A palavra “escravo”, no inconsciente coletivo brasileiro, remete não aos judeus no Egito ou aos romanos no Coliseu; e sim à população negra escravizada. A atividade proposta apenas reforça esse já tão arraigado conceito.

A seguir há um jogo dos sete erros:

Figura 19: O oitavo erro foi apresentar a princesa “boazinha” – obviamente em um nível imagético acima dos “passivos e felizes negros” – acabando com a escravidão com uma “penada”.

As meninas negras estão vestidas como empregadas domésticas (assim como as demais personagens negras) e a branca, de princesa.

A repetição de imagens estereotipadas pode gerar nas crianças negras um sentimento de inferioridade, resultando

em rejeição e negação dos seus valores culturais e preferência pela estética e valores culturais dos grupos sociais valorizados nas representações. (…) As denominações e associações negativas à cor preta podem levar as crianças negras, por associação, a sentir horror à sua pele negra (Silva, in Munanga, 2001, p. 16-24).

Ao contrário das demais imagens, em que adultos são representados, esta apresenta crianças; portanto, a rejeição ou identificação é imediata. Como a imagem da criança branca é valorizada e a da criança negra é apresentada numa situação de inferioridade, existe a possibilidade de, “internalizando uma imagem negativa de si próprio e uma imagem positiva do outro, o indivíduo estigmatizado (…) procurar aproximar-se em tudo do individuo estereotipado positivamente” (Silva, apud Munanga, 2001, p. 16-24).

Em contrapartida ao sentimento de inferioridade, a estereotipia das imagens pode gerar nas crianças brancas outro sentimento tão nocivo quanto: o de superioridade. Esse estado patológico provoca danos na forma como as crianças enxergam a si e ao mundo, pois, de acordo com Ferreira (2000), “é condição importante para a saúde psicológica ter-se um senso positivo de si mesmo como membro de um grupo do qual se é participante, sem nenhuma ideia de superioridade ou inferioridade” (p. 68).

No Brasil, essas relações dicotômicas indicam uma distorção social no que se refere a identidade, uma vez que, em uma sociedade miscigenada como a brasileira, o ideal valorizado é o branco-europeu.

Ainda segundo Ferreira (2000), a identidade é a

maneira como o individuo constrói suas referências de mundo (…), as referências em torno das quais ele organiza a si mesmo e a sua relação com o mundo, coletivamente compartilhadas, tanto no nível consciente quanto inconsciente.(…) a identidade é uma referência em torno da qual a pessoa se constitui (grifo do autor) (p. 45-47).

Crianças que não se veem representadas positivamente tendem a criar uma identidade baseada em valores estigmatizados, impossibilitando-as, dessa forma, a “alterar situações de discriminação por meio de atitudes afirmativas quanto às especificidades raciais” (Souza, apud Ferreira, 2000, p. 41).

A continuação da história apresenta os castigos e a resistência negra:

Figura 20: “Quando é rebelde”, por que não “quando luta pela sua liberdade”?

Falando sobre os quilombos

Figuras 21, 22 e 23: Apesar de apresentar de forma romântica e ingênua a vida nos quilombos, essa é a única parte, em 33 páginas, em que o homem negro é apresentado vivendo em liberdade.

Leis abolicionistas

A escola brasileira ensina e a mídia reafirma, de forma bastante reduzida, que as leis abolicionistas foram de grande importância para a melhora das condições de vida da população negra, quando não benesses concedidas pelos donos do poder. A revista trata das leis abolicionistas reproduzindo esses conceitos em imagens deturpadas e reprodutoras da História oficial.

Por estas afirmações falaciosas serem tão repetidas e pelo seu valor simbólico no imaginário coletivo, é fundamental saber redimensionar sua real importância. O objetivo de estudar as leis é tentar compreender por que sua transmissão segue sendo repetida de forma deturpada nas escolas e na mídia brasileiras. Se é verdade, segundo Freire (1996) e Focault (2004), que qualquer estudo deve ser feito levando em conta a ideologia de quem o sistematiza ou o reproduz, a serviço de quem e de qual ideologia as leis abolicionistas são transmitidas desta forma?

Histórico da Abolição

O primeiro dado a se ter em mente é que a Abolição foi um processo inevitável pela mudança do modo de produção escravista/colonial para o capitalismo e pela industrialização crescente no mundo. A escravidão aos poucos tornou-se uma instituição anacrônica. De acordo com Costa (1988), o capitalismo, a campanha abolicionista e a insurgência escrava mudaram as relações de produção: “As condições de produção tinham-se modificado no decorrer do século XIX, de forma a tornar o trabalho escravo cada vez mais irrelevante na escala nacional” (p. 86). Portanto, antes mesmo da Abolição “o desenvolvimento do capitalismo e a Revolução Industrial já haviam condenado a escravidão como forma de trabalho” (p. 94).

Em 1831 ocorreu a proibição do tráfico negreiro. A Inglaterra pressionou o Brasil a adotar uma lei considerando livre qualquer africano introduzido no país a partir de 7 de novembro daquele ano. Segundo Costa (1988), “a lei foi simplesmente ignorada. Entre 1831 e 1850 mais de meio milhão de africanos foram ilegalmente introduzidos no país” (1988, p. 27). Em 1850 foi aprovada a Lei Eusébio de Queiroz, mais dura e que surtiu efeito maior, apesar de o tráfico ter continuado por mais alguns anos antes de cessar completamente.

No curto prazo, os preços dos escravos dobraram e continuaram a subir daí em diante. Ante a alta dos preços, os fazendeiros passaram a se preocupar mais com o tratamento dado aos escravos. Multiplicaram-se, nessa época, manuais ensinando como tratar melhor as “mercadorias” humanas (Costa, 1988, p. 31). Outra consequência do aumento nos preços foi a concentração de escravos nas mãos dos grandes senhores. Dessa forma, a população, alijada de um “bem” que passou a privilégio de poucos, deixou de se identificar com a elite escravista. A escravidão começava a dar sinais de sua inviabilidade como sistema econômico (Salles; Soares, 2005).

Leis do Ventre Livre e dos Sexagenários

A revista se detém mais pormenorizadamente nas Leis do Ventre Livre, dos Sexagenários e Áurea.


Figuras 24 e 25: Ventre Livre.

A Lei do Ventre Livre foi fruto das batalhas entre os emancipadores e os escravistas. Os primeiros lutando por sua aprovação e os últimos contra. Como a agitação social já se tornava grande em prol da Abolição, a Lei do Ventre Livre foi aceita pelos escravistas com base na premissa “reformar para evitar maior radicalização” (Costa, 1988, p. 47).

No entanto, a pressão dos fazendeiros findou por transformar a lei num instrumento a seu favor. O texto do quadrinho passa a ideia de que Lei foi benéfica à população negra quando, na verdade, omite o fato de que o projeto final dava poder aos senhores de manter os ingênuos (como eram chamados os filhos dos escravos) em estado servil até os 21 anos ou entregá-los ao Estado, mediante indenização: “Ficavam [os ingênuos] obrigados a prestar serviços gratuitos em retribuição por seu sustento. Isso na prática significava que as crianças nascidas de mãe escrava de fato permaneceriam escravizadas” (Costa, 1988, p. 47).

Façamos um cálculo rápido, feito primeiramente pelo abolicionista Rui Barbosa (Costa, 1988): uma criança nascida em 1871, antes da aprovação da lei, teria nascido e continuaria escrava até o fim da vida. Se essa criança tivesse um filho aos 40 anos, isto é, em 1911, este seria escravo até 1932!

Para melhor compreensão desse cálculo hipotético, ilustrei uma situação também hipotética, em que um homem negro, chamado “João”, teria um filho chamado “Francisco”:

Tabela 2: Ilustração do cálculo de Rui Barbosa.

1871 – Nasce João, no dia 27/09, véspera da Lei do Ventre Livre; portanto, não beneficiado por ela.
1911 – João, aos 40 anos, tem um filho, Francisco. Francisco é ingênuo, portanto deve permanecer nas mãos do senhor até os 21 anos.
1932 – Francisco completa 21 anos e é libertado.

De acordo com a Lei do Ventre Livre, caso João tivesse um filho aos 60 anos, a escravidão no Brasil teria se prolongado até depois da Segunda Guerra Mundial. O que no início pareceu uma vitória do movimento abolicionista, em pouco tempo se revelou uma armadilha. Os escravistas, por sua vez, quando perceberam que a escravidão duraria meio século a mais, passaram a defender a lei contra a qual haviam arduamente lutado (Costa, 1988). De acordo com Salles e Soares (2005), “o Visconde de Rio Branco, que nos debates (…) de 1866 não vira razões para promover a emancipação dos nascituros, era, agora, o chefe do Gabinete que fazia aprovar a lei” (p. 110).

Como a Abolição se deu 17 anos após a Lei do Ventre Livre (em 1888), e como a entrega de crianças ao Estado foi praticamente nula, quase nenhum ingênuo foi beneficiado por ela:

pior ainda, ingênuos continuaram a viver como escravos, a ser vendidos juntamente com suas mães, a ser castigados como qualquer outro escravo, perfazendo as mesmas tarefas a que teriam sido obrigados se não tivessem sido libertos pela lei de 1871. Para eles, a liberdade continuava uma promessa a ser cumprida num futuro distante (Costa, 1888, p. 50).

Lei dos Sexagenários:

Figuras 26 e 27: Lei dos Sexagenários

Infelizmente, a falta de uma pesquisa criteriosa levou a revista a reproduzir a velha falácia de que o idoso negro teria sido beneficiado. Na verdade, de acordo com Costa (1988), esse pseudobenefício não foi uma conquista da população negra nem uma benesse da elite abolicionista. A Lei dos Sexagenários foi “uma tentativa desesperada dos que se apegavam à escravidão de deter a marcha do processo abolicionista” (p. 70) e ganhar alguma indenização em troca de escravos que já não mais serviam como mão de obra produtiva.

Faltando apenas três anos para a Lei Áurea, na prática a Abolição já havia sido tomada das mãos do governo pela população civil. De acordo com Costa (1988), a década de 1880 foi marcada pela inevitabilidade da implementação de mudanças. Os mais diversos setores da sociedade protestavam contra a escravidão, especialmente nos centros urbanos.

Na segunda metade da década de 1880, havia se tornado uma prática comum em São Paulo bandos de negros desafiarem as autoridades, arrancarem escravos das mãos dos capitães-do-mato, invadindo trens com o fim de libertar escravos de seus senhores. (…) No Rio de Janeiro, a agitação parecia incontrolável (p. 64-87).

Devido à turbulência política, os escravistas agora buscavam leis que postergassem a emancipação total que se aproximava, respeitando o direito de propriedade e o princípio de indenização.

Os mesmos fazendeiros que haviam inicialmente combatido a Lei do Ventre Livre, em 1885 lutaram arduamente pela aprovação da Lei dos Sexagenários.

A imagem da cultura negra

Figura 28: Contribuições da cultura negra no Brasil.

Apresenta-se a personagem negra mais uma vez como empregada, servindo à patroa branca. Pode-se concluir pelas imagens que cada uma está em seu devido lugar, pois, nas palavras de Alves (2004), “séculos de escravidão e miséria jogaram os negros no alto das favelas e no fundo das cozinhas” (p. 6).

No primeiro quadrinho, a frase “O negro precisa se integrar à sociedade!” parece transferir ao afrodescendente a responsabilidade pela sua não inserção. Em seguida, a “integração” apresentada é relegada às contribuições “exóticas” africanas, chamadas por Costa (1982) de “habitual periferia culinária-folclórica” (1982, p. 23), perpetuando assim a imagem do “negro folclórico”. São omitidas as contribuições africanas no campo da agricultura, da matemática, da navegação, da engenharia, da arquitetura, da medicina.

Atribui-se ao negro brasileiro a responsabilidade pela preservação e difusão da cultura popular, “responsabilidade incômoda, aliás, em cuja delegação pode-se detectar alguns componentes de preconceito incubado” (idem, p. 15). Ao se definir e classificar o negro como guardião dessa cultura, delimita-se também o seu campo de atuação, restringindo-o a esse espaço.

Hardt in Alliez (2000) afirma que “o racismo não mais se apoia em um conceito biológico de raça, e sim nas diferenças culturais, que seriam essencialmente constitutivas da identidade e, portanto, insuperáveis” (p. 363). Segundo essa visão, “seria vão, e até mesmo perigoso, permitir ou impor uma mistura de culturas” (idem, p. 365).  Estabelece-se, assim, uma base teórica igualmente forte para a separação e a segregação sociais:

esse pluralismo aceita todas as diferenças em nossas identidades, sob a condição de concordarmos em agir tendo por base essas diferenças de identidade, preservando-as, assim, como indicadores (…) de separação social (Alliez, 2000, p. 365).

A Lei Áurea

Segundo Salles e Soares (2005), a escravidão em 1888 já estava definitivamente sepultada. A Princesa Isabel assinou uma lei que apenas “sancionava uma situação de fato” (p. 113). No entanto, a revista atribui a esse fato uma dimensão histórica diversa:

Figura 29: A Lei Áurea

Se era só assinar uma lei, o que será que levou a Princesa Isabel a esperar tanto? A revista traz a ideia de que a Abolição foi um ato simples, bastava a princesa ter “pena” dos escravos, trocadilho infame que parece representar o que os autores presumiram ser o sentimento ideal em relação ao negro: piedade.

Quanto à “penada”, afirma Costa (1998, p. 15): “a Lei Áurea abolia a escravidão, mas não o seu legado. Trezentos anos de opressão não se eliminam com uma penada”.

Em 1888, a Lei Áurea apenas atestou o que de fato já era uma causa popular: “a lei vinha, como bem observou mais tarde o presidente da Província de São Paulo, selar um fato consumado” (Costa, 1988, p. 92). De acordo com Salles e Soares (2005), “em 13 de Maio os escravos de fato não eram mais que 400 mil e a perspectiva de liberdade estava cada vez mais a seu alcance” (p. 113).

Segundo Skidmore (1976), em 1872 a porcentagem da população escrava na população total era de 15,2%. Em 1888, essa proporção já havia diminuído a 5%. “Quando veio a Abolição, o Brasil já tinha uma longa experiência com milhões de homens de cor livres” (p. 58). A diminuição da população escrava se devia a diversos fatores, entre eles: à luta dos próprios escravos, à alta dos preços da mão de obra escrava, à campanha abolicionista, à mecanização da produção, à construção de ferrovias e à introdução do trabalho imigrante livre: “Dessa forma, o desenvolvimento do capitalismo do País, criando novas oportunidades e investimentos, tornava a imobilização de capitais em escravos menos atraente do que fora no passado, quando faltavam aquelas alternativas” (Costa, 1988, p. 57).

O ato de abrir mão dos 5% de escravos que inevitavelmente seriam libertos foi uma cartada de mestre da elite branca. Fabricando a ilusão que havia libertado um enorme contingente negro, a classe dominante conseguiu:

No processo de formação-invenção da cidadania brasileira, iniciado após a instituição da República e perpetuado durante o Estado Novo, o Brasil teve o duvidoso mérito de construir e propagar uma imagem de democracia racial. Esse mito preconizava a convivência harmônica entre negros e brancos, sob a suposição de que não haveria discriminação racial no Brasil (Salles; Soares, 2005).

  1. se imortalizar como defensora dos ideais humanistas, criando a base para a ideologia da democracia racial;
  2. se eximir da responsabilidade quanto ao futuro da população negra; e
  3. criar um sentimento de gratidão à Princesa Isabel – apelidada de “redentora” (embora ela apenas tenha “redimido” o nome da família imperial) – por parte da população negra, o que simbolicamente colocou essa pseudoliberdade como dívida à população branca. A elite fundiária foi suficientemente astuta “para perceber que se presidissem ao último ato poderiam conservar em suas mãos o controle político” (Costa, 1988, p. 54).

No entanto, sem indenizações para os ex-escravos, a situação se revelou um abandono à sua própria sorte. Para muitos a Abolição, sem meios para a consecução da liberdade, representou apenas o direito de ser livre para escolher entre a miséria ou a opressão do trabalhador pobre brasileiro: “pode-se dizer que o processo de emancipação do negro não culminou na Abolição. Começou com ela e ainda está longe de se concretizar” (Costa, 1988, p. 12).

Ao contrário da postura passiva atribuída pela ideologia dominante, a população negra lutou desde sempre pela sua liberdade e protagonizou, na ultima década da escravidão, o “maior movimento de desobediência civil de nossa história” (Mattos, 2005). ­­Segundo Costa (1988), “o fator decisivo [à Abolição] foi a insurreição dos escravos (…), o que levou os fazendeiros a ver a Abolição como uma medida necessária ao restabelecimento da ordem” (p. 12-52).

Para essa autora, a maior emancipação conseguida pela Lei Áurea foi “libertar os homens brancos do peso da escravidão e das contradições que existiam entre a escravidão e os princípios liberais adotados pela Nação”, pois “a escravidão era uma instituição ultrapassada, arcaica, símbolo do atraso do País” (p. 15-40).

Racismo com a melhor das intenções

A mobilização popular forçou a emancipação formal. Foi, segundo Costa, uma vitória do povo e uma conquista dos negros livres e escravos; “estes, no entanto, não escreveram a sua história. Por isso ela foi contada por outros” (1988, p. 94). Os livros de história enaltecem as leis abolicionistas, “descritas como dádivas das classes dominantes. Heróis foram os que tinham o privilégio de saber escrever e puderam contar sua própria história” (Costa, 1998, p. 94-95).

A falta de uma política social que incluísse verdadeiramente a população negra se refletiu na transmissão de saberes pela educação, que simplesmente omitia sua participação na história nacional. Como consequência, por desconhecerem a própria importância histórica, os afrodescendentes (incluindo suas crianças) ficaram impossibilitados de se enxergar como indivíduos ou como grupo social positivamente afirmados, pois a promoção da autoestima individual ou coletiva está relacionada “com a história, seja ela de vida ou social, individual ou coletiva” (Romão, in Cavalleiro, 2001, p. 161).

Em relação à criança negra, o conhecimento da história e do grupo étnico a que pertence é fundamental para a avaliação sobre a sua identidade, pois “ninguém nasce com baixa autoestima. Ela é apreendida e resulta das relações sociais e históricas” (Romão, in Cavalleiro, 2001, p. 161).

Se o entendimento do próprio passado é fundamental para a construção de planos futuros de uma determinada coletividade, coloca-se a questão: seria a falta de referência histórica um empecilho à organização e, consequentemente, ao poder de reivindicação dos afrodescendentes no Brasil? Me parece que sim. De acordo com Bazílio e Kramer (2003, p. 111), “trata-se de enormes contingentes populacionais que sistematicamente têm sido expropriados de seus direitos básicos e bens materiais e culturais e que, portanto, não conseguem conhecer e elaborar seu passado”; consequentemente, “ficam excluídos de processos de socialização que lhes permitiriam se ver como sujeitos não só produzidos, mas também produtores de história e de cultura” (Bazílio e Kramer, 2003, p. 111).

Para Santos (apud Trindade; Santos, 2002) os processos de ensino-aprendizagem são diretamente relacionados às relações de poder existentes em nossa sociedade. Portanto, a omissão ou valorização de certos conteúdos seriam reflexo da ideologia que se deseja impingir à população. “Poderíamos afirmar, mesmo, que o desconhecimento da historia é uma forma de se exercer o poder” (p. 83).

Considerações finais

A revista falha ao apresentar dados históricos de forma deturpada e equivocada. O que se defende neste trabalho não é escamotear a triste realidade da escravidão, e sim contextualizá-la, opô-la a imagens positivas e utilizá-la como meio de informação e reflexão para as mudanças necessárias à nossa realidade de desigualdades sociais.

Em virtude dos fatos apresentados, pode-se concluir que todo e qualquer material que direta ou indiretamente envolva fatos relacionados à história negra terá influência direta na autoestima e na forma de se enxergar de toda a população brasileira.

A desigualdade social no Brasil é diretamente relacionada às estruturas de poder fundamentadas na segregação étnico-racial. Segundo Salles e Soares (2005), o racismo e o preconceito racial são “elementos constitutivos e centrais” dessa desigualdade. (p. 132). Portanto, se faz mister um combate ao racismo que envolva concomitantemente os setores do governo, educação, mídia e sociedade.

A ação

Foi enviada ao núcleo de atendimento da Maurício de Sousa Produções uma cópia deste trabalho.

A resposta

Como resposta, obtivemos a carta que está reproduzida na Figura 30:

Figura 30: A carta de resposta

O diálogo se provou frutífero, principalmente pelo reconhecimento, por parte da editora, da necessidade de revisão dos conteúdos. Entretanto, é interessante perceber que as fontes consultadas para a confecção da revista (os livros didáticos) tampouco se colocam a serviço de uma educação democrática.

Ao afirmar “nunca foi a nossa intenção ofender a história afro-brasileira, muito pelo contrário”, a editora reproduz esta que é uma das principais características do racismo brasileiro: a falta de intencionalidade.

Em estudo similar, que veio inspirar a confecção desse trabalho, Nascimento (1993) estabeleceu um diálogo com os autores da cartilha infantil O sonho de Talita, apelidada pelo Movimento Negro de “O pesadelo de Talita”. A obra foi analisada e considerada violentamente racista. Ao ser apresentada aos resultados, a editora saiu-se com a seguinte frase: “Nunca foi intenção da autora e da editora desmerecer os nossos irmãos e o povo negro” (op.cit., p. 53).

Pode-se concluir portanto, que o racismo brasileiro se encontra enraizado em nível inconsciente, pois as atitudes racistas são tomadas sem que os autores tenham consciência e intencionalidade de “ofender” ou “desmerecer” os “irmãos” afro-brasileiros.

Conclusão

Se é verdade que a Ciência contribui para desvelar conhecimentos ocultos, também o é que, encerrada nas bibliotecas das universidades, sua função social se esteriliza. Acredito que a teorização acadêmica, principal mas não exclusivamente em Ciências Humanas, deve ser colocada a serviço da humanidade.

Este trabalho não é pró-negro, é pró-humanidade, pois qualquer tipo de discriminação, independente se de raça, religião, sexo ou qualquer outro motivo, fere a humanidade como um todo.

Talvez tenha sido este trabalho um passo inicial para que Mônica venha a ser a nossa futura Mafalda.

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