A capoeira é minha pedagogia e minha filosofia

Guardo minha escassa paciência para aqueles que realmente precisam de compreensão. Para os demais, minha filosofia é a do capoeira: bobeou, levou! Pois quem não sabe andar, pisa no massapé, escorrega. Quem não sabe jogar, fica miúdo no jogo. Chega devagar. Treine antes de entrar na roda. O mesmo vale em relação a entrar num debate, numa discussão. Tem que se informar antes. Se vocês sabem que têm uma limitação, vocês deveriam ser os mais preocupados e dedicados. Se não sabem, vocês também deveriam ser os mais preocupados. Na roda da malandragem, no meio dos partideiros, quem atravessa o samba, é atravessado. Quem tá sempre pedindo compreensão é porque não está compreendendo nada. Então, apenas pare, observe, sinta. Quem tudo apenas pede é porque pouco merece. Porque quem tá no corre o corre reconhece. Entenda, de antemão, que ninguém tem obrigação de te ensinar nada. Pelo menos, não mais do que você tem de se virar para aprender. Afinal, quem tá no erro é você.

Na pista, ninguém educa segurando pela mão, não. É vivência preta. É pedagogia. É filosofia. Na nossa vida, ou a gente corre na frente, ou fica pra trás. A vida ensina de diversas formas. E, nas mais refinadas, ela impõe um custo a quem é displicente com o conhecimento. Capoeira é fundamento. É ensinamento. Ainda tem gente dizendo que é preciso inserir pedagogia na capoeira, método, etc e tal. A capoeira é o próprio método. A capoeira é a própria pedagogia. É a partir disso que ela se estabelece como filosofia de vida. Capoeira ensina. Mas não é ensinar pegando na mão. Pelo contrário, te ensina te deixando na mão. Te ensina a te virar. Ao mesmo tempo, ela te mostra que o mundo é acessível e que podemos realizar até mesmo o impossível. Te prepara para tudo que vier e pra tudo que você quiser, ao te ensinar que pra tudo tem um jeito. Ou tem que ter. Se vira!

Capoeira é te testar o tempo todo, te apertar de todas as formas e, nisso, extrair o melhor de você. Ela vai te inspirar toda confiança do mundo e depois vai te trair. Só para você aprender a não confiar demais, em hipótese nenhuma. Mais do que a confiança em si, a lição é sobre sobre o perigo da acomodação. Quando tomamos as coisas por certo, tendemos a ser displicentes. E isso a capoeira não tolera. Na capoeira, cochilou, cachimbo cai. Se dormir no ponto, te ganham, amigo. E é apenas essa filosofia, essa pedagogia de te apertar, que explica esse jogo de picardia, de sorriso falso, traiçoeiro. É um apertando o outro, num jogo de malandro onde duas facas vão se amolando. Ou pelo menos era. Porque com essa nova pedagogia nutela, a brincadeira virou só brincadeira mesmo. O meio virou fim. Se ensina pegando na mão. E, quanto mais boias e coletes salva-vidas à sua disposição, mais displicente você será em relação a aprender a nadar. Com toda sinceridade, na capoeira, quem quer ser mimado, tá no lugar errado. Capoeira com outra pedagogia, com outra filosofia, pode ser considerado tudo, menos capoeira. A capoeira não cabe em uma academia, numa forma de levantar a perna ou balançar o corpo. Ela é uma relação com o mundo baseada no “se vira” que o sistema é bruto e só sendo mais bruto que ele para passar por cima de tudo.

É recorrente a comparação desse jogo de gato e rato que é a capoeira com o jogo de xadrez. Na minha concepção, capoeira é xadrez de Exu. É um xadrez de corpos. Uma esgrima corporal a partir de uma corporeidade sustentada na filosofia desse Orixá. Tem tranquinagem, tem música, tem dança, tem certezas sendo desmanchadas em fração de segundos, tem o impossível acontecendo como se fosse a coisa mais normal do mundo, como punição à displicência ou prêmio à insistência, tem a zombaria, têm as gargalhadas, os pontos (enigmáticos) e, principalmente, um corpo vibrante, dinâmico, alegre, vivo! Características inconfundíveis desse Orixá do fogo. Mas as “coincidências” não param por aí. Pense o corpo. O que é ele? Ele é elemento de ligação. Sem ele, nada se realiza. Nada se materializa. Tem que passar por ele. Uma ideia precisa do corpo para se realizar, tal qual sempre se precisa de Exu para que qualquer coisa seja realizada, como bem se pode apreender da mitologia ioruba e dos ensinamentos nas casas de axé. Até para se comunicar com os demais Orixás, não se faz se não se alimenta Exu antes. Há de se alimentar o mensageiro, pois, caso contrário, a mensagem não chega. Tem que cuidar do canal. O corpo também é esse canal que deve ser cuidado para que possamos materializar nossos desejos e o que emana da nossa espiritualidade. As comparações com o corpo vão ao infinito…

Todavia, o infinito não cabe aqui e seria demasiada pretensão querer dar conta dele ou de Exu. Então, vamos no sapatinho. Falemos um pouco da figura mitológica que traz toda uma pedagogia e uma filosofia de vida que fazem parte do fundamento da capoeira. Nas histórias desse Orixá, se percebe que quem o alimenta, recebe. Quem o negligencia, se dá mal. Quem o alimenta e sobe na vida, mas depois se acomoda e se faz displicente, se dá mal duas vezes. Malvado, não? Vingativo, né? Lição! Ensinamento. Existe um ditado que meu pai sempre me falava: dinheiro não leva desaforo pra casa. Qual não foi minha surpresa ao saber que Exu além de simbolizar o fogo, a transformação, a comunicação, o movimento, a troca, dentre muitas coisas, também simboliza o dinheiro? Com dinheiro, o ditado é meio óbvio. Agora troquemos ele por “comunicação e movimento”, por exemplo. Sem se comunicar ou se mover direito, a gente chega a algum lugar? Nós somos a medida do esforço que empregamos nisso, da reverência prestada, da atenção dispensada. É um Orixá que também está sempre arrumando confusão para aqueles que não prestam a devida atenção com ele, né? Já viram como a falta de cuidado com a comunicação ou com o dinheiro ou mesmo com o movimento acabam te colocando em situações para lá de difíceis? Bom, voltemos ao ditado e troquemos “dinheiro” por Exu. É isso. Ele não leva desaforo pra casa. Ao mesmo tempo que, se você sabe cuidar dele, ele cuidará direitinho de você. Com ele, tudo você pode. Troque-o pelos elementos que simboliza e você vai aprender que ele apenas está te ensinando, à sua maneira, pra valer, a ser sagaz com os elementos que vão desenhar sua trajetória de vida.

Ainda, nas histórias, ele vai ensinar o valor do sacrifício, da dedicação. Sem choro nem vela, quem põe metade, recebe metade. Quem põe demais, recebe demais. Mas como tudo que é demais sobra e tudo que sobra atrapalha, vai dar problema também. Mas quem decide isso? Quem nos dá a medida do que é pouco ou muito? É aí que entra o amigo inseparável de Exu: Orunmilá, o guardião do saber — que é fornecido por Exu, que, como guardião dos caminhos e da comunicação, tudo sabe. Orunmilá é como um oráculo. Não adianta se esforçar se o esforço não está sendo bem direcionado, bem empregado. Nas histórias, quem sai sem antes se informar, só vai se atrapalhar e não vai chegar. Quem se informa e não segue as recomendações, será acometido pela mesma má sorte. Não basta saber, tem que fazer. E isso é um grande ensinamento para a vida. Se a gente buscasse se informar antes de sair, antes de falar, antes de tentar, evitaríamos tanta confusão. Para qualquer projeto, uma pesquisa prévia é fundamental. Pesquisar antes de fazer é uma tradução da relação com Orunmilá. Fazer o que a sabedoria recomendou é uma forma de alimentar e venerar Exu. A propósito, a primeira recomendação de Orunmilá é sempre alimentar Exu. Ele mesmo, sábio que é, separa a primeira parte de tudo que recebe para seu amigo e mensageiro, guardião dos caminhos e da comunicação.

Mas aí, metaforicamente falando, tem aqueles que não recorrem a Orunmilá quando querem alguma coisa. Por exemplo, quando entram numa roda de capoeira ou numa discussão. Ou aqueles que até sabem o que deveriam fazer, isto é, “consultaram o ifá”, mas não fizeram o recomendado, não alimentaram Exu. Em resumo, sabem, mas não fazem. Me diz o que tende a acontecer? Vai dar ruim. E a culpa é de quem? De quem foi displicente! É sobre aprender a ser responsável. Daí decorre todo o problema com Exu e com nosso sistema filosófico, mitológico e pedagógico por parte das classes dominantes. É um problema do tamanho da dificuldade dessa sociedade em lidar com suas responsabilidades. A facilidade de se desvencilhar da culpa e da responsabilidade é o grande trunfo para a manutenção do status quo. A displicência tem um custo bem alto e se você nao tá pagando por ela, é porque alguém está pagando por você. O que seria dessa galera se tirássemos dela o poder de alegar desconhecimento e pedir compreensão? Compreensão essa que nunca nos dão. Se impuséssemos um custo á sua cômoda displicência… pense nisso! E o outro lado da moeda é que essa filosofia quando incorporada confere às pessoas um poder incontrolável — como o é o próprio Exu e como costumavam ser os capoeiras. Por isso, são sempre inibidos quando manifestados a partir de corporeidade negra.

Esse é aquele momento em que deixo as pessoas perceberem que o fato de eu gostar de jogar capoeira de vermelho e preto vai muito além do fato de eu ser torcedor do Flamengo. É porque eu acho que tem tudo a ver — capoeira e Exu. Pra mim, é fundamento. É referência. Tem música. Tem alegria. Tem picardia. Tem zoeira. Tem o impossível. Tem o improviso. Tem, principalmente, o custo da displicência. Tem que ter sabedoria. Tem que saber os atalhos. Tem que conhecer os caminhos. Tem tudo que já citei, repeti e muito mais. É cria da rua e dona da rua. É a própria rua. Cada movimento é uma chamada. E cada chamada é uma encruzilhada. Ali é assim, o jogo é animado mas quem vacilar acaba deitado. E quem é o culpado? Respondo com uma frase clássica dos capoeiras: errado é quem leva. Sempre! É pedagogia. É filosofia. Por isso, cantamos:

“Olha, bem miudinho. Cuidado! Esse jogo de angola é mandingado.
Esse jogo de angola é mandingado e errar nesse jogo é complicado”

P.S.: E vou dizer que não acho, em hipótese alguma, que o vermelho e preto do Flamengo seja mera coincidência. Até porque elas iriam bem além das cores. Torcida vibrante, adora uma farra, mais próxima do povo… Um time que adora aprontar umas com a gente. Sempre que achamos que está perdido, ele vai lá e mostra que “isso aqui é Flamengo, porra!!”. Como aquele memorável Flamengo e Santos. E sempre que achamos que está ganho, ele nos mostra que é Exu no comando e toda displicência será punida e motivo de zoeira. Ah Cabañas… Por fim, aquele gol que Deivid perdeu é a cara de uma punição exemplar à displicência na pedagogia de Exu, te coloca naquela encruzilhada em que você não sabe se ri ou se chora…  

Maicol William

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