Definitivamente, a história da transformação de uma modesta filmagem em Super-8mm (realizada entre 1976 e 1978) num registro no moderno sistema DVD neste 2009 de tantas desgraças é a prova maior que o Destino dirige as nossas vidas. Se alguém naquele longínquo ano de 1976 dissesse que o garoto pobre filmado jogando Capoeira num Morro ainda mais pobre — de lazer e de oportunidades diversas para crianças da mesma idade e origem — seria MAIS DE 30 ANOS DEPOIS exatamente a pessoa que lançaria o histórico registro ao Mundo, via Internet e por esse por vezes nefasto YOU TUBE, todos diriam que o sujeito estava bêbado ou doido.

 

Mas a história da viagem de QUASE VINTE MIL KM da "fitinha" por boa parte do Brasil é a história do sonho vencendo todos os pesadelos, da necessidade sobrepujando as dificuldades, do objetivo teimosamente alcançado driblando todos os obstáculos, persistindo ano após ano, apesar das frustrações. Quando 2 jovens favelados se propuzeram comprar uma filmadora de plástico, coisa fina, importada — com o pomposo nome de GIOCA Royale — a intenção não era se filmarem mas registrar a Capoeira dos 2 nomes maiores daquela época na zona sul carioca, os mestres Peixinho e Camisa, ambos no auge de suas formas técnica e física e o ensino solitário do folclórico mestre Lua em diversos locais.

Assim, sem dinheiro, lenço nem documento, o jeito era "pedir as contas", sair do emprego com indenização, FGTS mais férias, etc para poder adquirir a engenhoca. Só ano e meio mais tarde compraríamos um projetor — também de plástico e da mesma marca — para constatar adiante que a maquininha, muito mal "bolada", lixava o filme tanto na projeção como no rebobinamento de cada rolinho de filme. Os rolinhos, depois de revelados a um preço absurdo, se transformavam em apenas CINCO MINUTOS de imagens e, como eram caros, precisamos de 3 longos anos de filmagens para obter esse registro hoje postado no YOU TUBE por mestre GUARÁ, do grupo ECAP-Escola de Capoeira Angola de Paris. Podendo adquirir apenas 2 ou 3 rolinhos por evento, era preciso esperar pelo evento do ano seguinte e, novamente, pelo do outro ano.

Tendo conseguido a FILMADORA em fins de 1975, passamos para passo seguinte, tentar adquirir um projetor para filmes 8mm, uma fortuna na época (algo entre 10 e 12 salários mínimos) quase todos da KODAK americana ou, então, de origem alemã. Surgiu uma luz no fim do Túnel : um leilão de uma estatal no bairro de Botafogo tinha, entre mil bugigangas, um esquisito projetor meio manual meio elétrico, próprio para slides, mas que nosso gênio criador "adaptaria" para passar a minúscula "fitinha". Nesse leilão conheci um "macete" que só décadas depois se tornaria um hábito nesse tipo de evento. A cada lance confirmado pelo Leiloeiro oficial "pipocavam" em vários cantos da sala novas propostas, elevando o preço de cada "velharia" muito além de um valor razoável para um objeto usado. Meu "projetor" não escapou da armadilha... com lance inicial em torno dos 40 cruzeiros da época, acabou ficando quase em 200 "mirréis" ou "paus" como se dizia, 4 "galos" (dezena 50 no Jogo do Bicho) para os malandros do Morro onde nascemos. Paguei na hora os 10% destinados ao pregoeiro e fui buscar no dia seguinte o aparelho. Levei um susto : os sisudos senhores de terno e gravata que "disputaram" comigo o projetor de slides não passavam de funcionários comuns da estatal, serventes na sua maioria, a elevar os preços do leilão só Deus sabe porquê.

Anos depois, já na Amazônia de matas e águas, eu usaria desse estratagema no interior, num leilão que fui convidado a "cantar". Cochichei o "macete" para um amigo ribeirinho e quase morri do coração ao notar que êle espalhara a idéia entre meia dúzia de jogadores do seu time, que disputavam os lances entre sí, sem saber que teriam que pagar o prêmio, no final do leilão. Relato o fato numa curiosa crônica intitulada LEILÃO DE "URUBU", cujo link é... www.overmundo.com.br

Mas, voltemos ao Rio de 1976... o fato é que o projetor de slides nunca funcionou a contento para se ver os filmetes, guardados em dez ou doze rolinhos amarelos durante uns 3 anos. Registramos a nós mesmos, 1 ou 2 amigos do Morro dos Cabritos, "Rubinho Tabajaras" em seus últimos dias na face da Terra e também um exímio angoleiro da Velha Guarda, mestre Gilberto, muito simpático, a cara do cantor Gilberto Gil e que tinha uma roda no último sábado de cada mês na longinqua e abandonada Barra da Tijuca. A mão do Destino poz mestre Camisa, pela primeira vez na nossa frente... mas só tinha alunos na tal roda e deixei para filmar na bela praia, totalmente vazia em pleno meio-dia de sábado. Camisa não ficou para o banho de mar.

Adiante, me tornei sócio do Clube Guanabara apenas para filmá-lo... certa vez subi numa cadeira durante um treino dele e passei a registrar a roda. Êle parou tudo e veio "tomar satisfações" : — Que diabos era aquilo" ?! Respondi-lhe que queria gravar um jogo dele ! Não se opoz ! A máquininha piscou, tremeu e acendeu a luz vermelha... não filmava se não havia iluminação suficiente. Desisti, mas como a Capoeira era DE GRAÇA para os sócios do clube — acredite quem quizer, mesmo assim os inscritos eram na maior parte "de fora" — me tornei aluno dele, por 2 semanas somente. A ginástica era demais, 100 ou 150 repetições de tudo e eu tomara raiva de ginástica no Exército, recruta que fui no ano anterior. Daí, com uma segunda via da carteira de sócio (com meu nome mas com a foto de meu irmão gêmeo) entrou em cena o "Sérgio Leiteiro", que completou o mês de aulas apenas praticando ginga, talvez porque fosse aluno do Lua.

Lua e boracha, roda na feira de Sao Cristovao Rio de Janeiro anos 70

De minha parte, continuei acompanhando as exibições e/ou apresentações de José Tadeu Carneiro onde podia, principalmente no CEU - Casa do Estudante Universitário, na "curva" do bairro do Flamengo. Cheguei a levar um caderno para "desenhar" golpes e movimentos dele, sem sucesso, até que me convenci que só uma filmadora poderia gravar com fidelidade a genialidade (na minha opinião particular) de um dos maiores capoeiristas do século passado, no Rio pelo menos. Está aí o filme, que não deixa ninguém mentir !

Em 1979, enquanto office-boy de uma multinacional de extração de bauxita, conheci um funcionário da CVRD que se propoz montar/colar os 12 ou mais rolinhos, para fazer disso um filme decente. E é esse filme de quase 40 minutos que irá rodar por uns VINTE MIL QUILÔMETROS, durante exatos 30 ANOS, atravessando boa parte do Brasil e até o oceano Atlântico — rumo à Europa — para navegar agora nas ondas da Internet e se transformar num produto a ser visto no Mundo inteiro. A primeira viagem foi do Rio para Belém, no Pará, em março de 1984... dentro de uma das 32 caixas enviadas pelo Correio, quando essa empresa não falhava tanto. E lá se foram os primeiros 3 MIL KM... até que um dia, nas férias de julho/1990, revendo os agora 2 rolos de filme Super8 no CENTUR, em Belém — na maior bilbioteca do Norte, salvo engano — decidimos que as rodas de Capoeira filmadas eram boas demais para ficarem restritas a 2 ou 3 pessoas.

Daí procuramos um amigo (na época) com boas relações e êle nos apresentou um professor da UFPA, a universidade "das greves", naquele tempo pelo menos. Se chamava Viegas ou Cubas... o nome pouco importa e morava num casarão antigo no bairro Cidade Velha, no qual se entrava pela garagem. Resolveu nos "esnobar", mostrando todo seu acervo de belas máquinas de fotografia e filmagem, inclusive uma tela automática, que descia e se enrolava sozinha. Queríamos um trabalho simples e rápido : projetar o rolo na tela e filmar dali. Êle queria qualidade e precisava de tempo, além de termos que deixar os filmes sob seus cuidados, o que não nos agradava nem um pouco. Acabamos por desistir... e os 2 carretéis de filme 8mm aguardariam por quase 8 anos uma nova viagem (em 1998 ?), agora de uns 4 MIL KM, para Curitiba, de onde retornariam em forma de moderna fita VHS.

Quando o Grupo Abadá-Capoeira se instalou em Belém (em 1995, salvo engano) meu irmão fez amizade com o representante dele na capital, prof. "Cobra Preta". Nas palavras dele..."assim que mestre Burguês nos mandou a fita VHS — êle transferiu o 8mm para esse novo formato — eu a emprestei para o "Cobra", ficando lá com êle uns 2 meses. Então veio mestre Peixinho — trazido por meu amigo Luís Carlos (de Icoaraci) — e tornei a emprestar a fita, agora por uma semana. Aliás, me. Peixinho chegou a ver uns 15 minutos do filme, antes de uma Oficina que deu em Belém. Anos depois veio a Belém mestre Camisa e lhe falei da (existência da) fita. Interessou-se e indicou-me seu aluno "Japonês" — dono da locadora "Sétima Arte" — que fez cópia de parte da fita, porque tinha um serviço urgente e eu não quiz deixar a fita com êle".

Dessa longínqua época (1998 /99) até 2008 sempre desejamos pôr à disposição do público as imagens gravadas VINTE ANOS antes no Rio (em 1977/78), desejo que poderia ter sido realizado por 3 ou 4 pessoas/Grupos que contactamos naquele tempo. Quando mestre "Guará" veio ao Brasil — em 2008, para uma semana de Capoeira e Oficinas no Nordeste — tentamos fazer uma cópia decente dos 40 minutos de filme VHS numa loja especializada aqui do bairro. O dono, desocupado, exigiu que a fita fosse deixada, apesar dos 25 reais exigidos... estava "sem tempo" para fazer o serviço na hora, embora a máquina trabalhe sem interferência nenhuma das mãos humanas. Recusamos ! No Pará "o impossivel acontece a toda hora... e toda espécie de impossivel !". Temíamos pela integridade do registro ou até pela troca do "miolo" da fita VHS por uma outra imagem qualquer. Mestre Guará tornaria a voltar ao Brasil mais uma vez, em agosto de 2009... exatamente na época em que um "milionário" resolve (re)contar a história (? !) da Capoeira(gem) na zona sul do Rio, recriando nela roupas — e suponho que até fatos — que nunca existiram. Era a hora exata para que nosso registro filmado fosse mostrado ao Mundo, o que finalmente seria feito... pelo garoto que foi objeto da PRIMEIRA FILMAGEM, do registro inicial feito pelos Irmãos Azevedo, mostrando a Capoeira baianíssima de mestre Lua (na época, de Canjiquinha, segundo Fátima Colombiano, vulgo "Cigana") e suas aulas no Morro dos Cabritos, em Copacabana, Rio de Janeiro, BRASIL.

A fita VHS sai de Belém para o Rio, outros 3 MIL KM se somando aos ONZE MIL KM já percorridos e de lá segue para a FRANÇA... mais uns 4 MIL KM, onde encerra uma história que demorou exatos TRINTA ANOS para ser contada e mostrada a tantos capoeiristas do Grupo SENZALA que dela fizeram parte, mesmo que por breves instantes. Computadores ETERNIZAM tudo o que gravamos neles... para o bem ou para o mal, para consagrar os bons e desmentir os que tentam iludir quem não viveu esse Passado de glórias da Senzala, linda Senzala, no dizer feliz de mestre Toni. Curtam esses momentos... são registros históricos e verdadeiros. Se uma imagem vale por mil palavras, que se dirá de um filme, então ?! "NATO" AZEVEDO (poeta e escritor)